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Data da publicação: Março de 2011
DEOLINDA LEVA NOVOS ARES À MÚSICA PORTUGUESA
Quarteto dá voz a heterônimo nascido no subúrbio de Lisboa e cai nas graças de público e crítica
Com pouco mais de trinta anos de idade, Ana Bacalhau, Pedro da Silva Martins, Luís José Martins e Zé Pedro Leitão, os lisboetas do Deolinda, revigoram a música popular portuguesa com canções bem-humoradas e de forte crítica às políticas do primeiro-ministro José Sócrates. Depois de experimentar enorme sucesso em Portugal, a banda viaja pela Europa divulgando o segundo álbum "Dois Selos e Um Carimbo" e planeja, dia desses, vir tocar no Brasil. Abaixo, *entrevista com Ana Bacalhau, a voz da personagem que deu nome ao grupo
POR: ADRIANA PAIVA
Adriana Paiva: O Deolinda é, na verdade, a junção de três primos e um amigo que veio a se tornar seu marido. Quando vocês começaram a tocar juntos?
Ana Bacalhau - Começámos a tocar juntos em 2005, depois de um almoço em família. Já andávamos com intenção de fazer qualquer coisa os quatro e naquele dia, proporcionou-se. Como gostámos do que ouvimos logo nesse primeiro ensaio, fomos ficando e tocando. E, agora, é o que se sabe.
Ana, você tem formação acadêmica em Linguística e Literatura. Fale-me um pouco dessa passagem das Letras à Música.
A.B. - Eu estudei Literatura e Linguística Portuguesa e Inglesa, mas o meu amor pela música falou mais alto e fiz dela a minha vida. Se, à primeira vista, a minha formação académica poderá não ter correlação imediata com a música, o facto é que por ter estudado a língua portuguesa, a interpretação textual, a importância da palavra e do texto, tenho um cuidado maior na minha abordagem aos textos das canções que canto. Tento pôr a minha voz ao serviço da mensagem. Isso é, para mim, o mais importante, respeitar a canção.
Ana canta e também compõe? Quais são as atribuições de cada um no grupo? Há planos de gravação em outros idiomas?
A.B. - Eu compus algumas canções numa banda que tive, anterior aos Deolinda, que se chamava Lupanar. Com os Deolinda, a marca autoral do Pedro (da Silva Martins) é muito forte, personalizada e de uma enorme riqueza e qualidade, pelo que, não faz sentido que a minha voz autoral, bem mais limitada que a do Pedro, se faça ouvir. O Pedro compõe a melodia e, a seguir, escreve a letra. Apresenta-nos a canção à guitarra e, imediatamente, começamos a pensar no arranjo e na interpretação. Este projecto nasceu de uma vontade em explorar a língua e música portuguesa e inscreve-se num imaginário muito português. Por isso, achamos difícil gravar numa outra língua.
Você, até recentemente, era arquivista do Ministério das Finanças. Os outros integrantes do Deolinda ainda mantêm trabalhos paralelos à atuação na banda?
A.B. - Todos nós somos músicos profissionais e todos nós tivemos outras profissões, para além da música. Agora, com a agenda de concertos que temos, é impossível manter outra actividade profissional. E também não queremos, porque fazemos aquilo de que gostamos e conseguimos viver disso.
Vocês costumam rechaçar o rótulo de fadistas. Qual seria, então, a relação do Deolinda com o fado, gênero musical que, poderia-se dizer, está para Portugal como o samba está para o Brasil?
A.B. - O fado é uma influência clara e muito forte, nas temáticas de amores não-correspondidos e num universo castiço que é retratado em algumas canções. No entanto, a nossa música não é, na forma ou na essência, fado. Posicionamo-nos na música popular portuguesa, onde se inscrevem os cantautores, o folclore, a canção tradicional. Se, com o nosso trabalho, pudermos chamar a atenção para as formas tradicionais da nossa música e pôr aqueles que nos ouvem atentos ao cancioneiro português, que é riquíssimo e vastíssimo, então ficamos muito felizes.
Fale-me, por favor, quem, entre seus conterrâneos, são os músicos que influenciam ou influenciaram o Deolinda.
A.B. - Zeca Afonso, António Variações, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Camané, Hermínia Silva, Humanos, Clã, Madredeus, Gaiteiros de Lisboa ... São muitos e todos eles extraordinários.
O Deolinda tem fortes componentes histriônicos e teatrais, presentes tanto nas canções quanto nas performances da banda. Por que o grupo ganhou o nome dessa personagem do subúrbio lisboeta? Quem é, afinal, essa rapariga de nome Deolinda?
A.B. - A Deolinda representa-nos, de certa forma. Representa o universo musical de quatro músicos que, quando se juntam, fazem aquelas canções, com aquele som, com aquelas características. Costumamos dizer que se o Fernando Pessoa tinha vários heterónimos, nós temos um heterónimo partilhado por quatro pessoas. A Deolinda é uma senhora dos seus 30/40 anos, solteira e observadora. É das suas observações que nascem as nossas canções.
Entre suas influências, você cita pelo menos duas cantoras brasileiras: Elis Regina e Mônica Salmaso. Até que ponto, você diria, nossa música influencia o trabalho do Deolinda? Quem são os outros músicos brasileiros cujo trabalho a banda acompanha?
A.B. - A música brasileira é pedra basilar para qualquer músico que trabalhe a música popular. A forma como se canta o português do Brasil, trazendo para a música o discurso corrente sem com isso sacrificar a beleza poética, cantando com subtileza, sagacidade e emoção, tudo isso faz com que seja obrigatório ouvir e conhecer a música popular brasileira. Para além de Elis Regina e Mônica Salmaso, conhecemos e acompanhamos o trabalho dos incontornáveis Caetano Veloso, Chico Buarque, João Gilberto, Marisa Monte, sem esquecer os grandes Cartola, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Los Hermanos (acompanhando ainda o extraordinário trabalho de Rodrigo Amarante, nos Little Joy).
Rodrigo Leão, um dos fundadores do Madredeus, já gravou com Rosa Passos e Adriana Calcanhotto, duas conhecidas cantoras brasileiras. Há conversações entre o Deolinda e músicos daqui, no sentido de formação de parcerias, de colaborações?
A.B. - Neste momento, não temos nenhuma colaboração planeada com músicos brasileiros, no entanto, pela afinidade musical que temos com o Brasil, caso se proporcione, teremos muito gosto em trabalhar em conjunto com músicos que admiramos.
O Deolinda planeja apresentações no Brasil? Tem conhecimento de como anda a receptividade de sua música junto ao público brasileiro?
A.B. - Ainda não conseguimos ir aí tocar, mas queremos muito, até porque recebemos muitas mensagens do Brasil com fãs a pedir-nos que aí toquemos. Esperamos estrear-nos no Brasil este ano ainda, ou no próximo. Temos muitas expectativas relativamente ao público brasileiro e à forma como a nossa música pode ser acolhida no país.
Há quem diga que a canção "Parva que Sou" é uma resposta à politica econômica de José Socrates, no que essa teria limitado o acesso dos jovens portugueses ao mercado de trabalho. A música encontrou ótima acolhida por parte desse público, vindo a tornar-se uma espécie de hino da nova geração. A letra exprime o que vocês pensam sobre a juventude portuguesa?
A.B. - O tema "Parva que Sou" não é uma resposta a ninguém, é a constatação de uma realidade que alguns de nós vivemos pessoalmente e que vemos os nossos amigos viver. O impacto que teve junto das pessoas ajudou a trazer para a discussão pública um problema que, viemos a descobrir, não é só português. Tivemos espanhóis, franceses, ingleses e, até, brasileiros a escrever-nos e a dizer que também eles se reviam de alguma forma naquelas palavras. É um problema que, por afligir muita gente, de todos os quadrantes políticos e classes sociais, deverá ser debatido de forma séria, isenta e unida, com rigor e vontade de encontrar soluções válidas.
O Deolinda sempre teve preocupação em fazer canções com mensagens políticas e sociais?
A.B. - Sempre procurámos retratar nas nossas canções a realidade que conhecemos e falar um pouco das nossas idiossincrasias, com um olhar crítico e com alguma boa disposição à mistura. Para além de pretendermos deixar o público com um sorriso de prazer ao ouvir as nossas canções, é óptimo sentir que deixamos o público, também, a pensar.
"Canção ao Lado" foi muito bem recebido pela crítica. E como tem sido a aceitação a esse segundo álbum do grupo? Em que aspectos "Dois Selos e um Carimbo" se diferencia do álbum de estreia?
A.B. - O "Dois selos e um carimbo" já atingiu o galardão de platina e continua nas tabelas dos mais vendidos, o que nos deixa muito felizes. Mais felizes ainda ficamos ao ver que as pessoas sabem as canções de cor, nos nossos concertos. Este segundo trabalho é talvez mais maduro, reflectido e resultado de dois anos intensos de estrada, em que aprendemos muito, aperfeiçoámo-nos, conhecemos países e culturas novas.
Que papel redes sociais como Twitter e Facebook desempenham na divulgação da banda?
A.B. - As redes sociais permitem um contacto mais directo do público com os seus artistas preferidos. Isso é importante, não só para quem quer falar em discurso directo com os músicos que admira, mas também para os músicos, que têm ferramentas que lhes permitem a divulgação do seu trabalho de forma eficaz e a baixos custos.
*Nota dos editores: optou-se por manter a grafia originalmente utilizada pela vocalista.