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Revista da Cultura * Seção: Cinema. Páginas 48 a 50.
Data da publicação: Junho de 2013 * Edição n° 71


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Estas veias que não fecham


Documentário do uruguaio Guillermo Planel propõe discussão ampliada sobre direitos humanos na América Latina


POR: ADRIANA PAIVA


Mais Náufragos que Navegantes, quarto documentário do diretor Guillermo Planel, fez recentemente sua première no teatro Oi Casa Grande com sala cheia. Não há exagero em afirmar que boa parte do público que rumou para o shopping do Leblon, no Rio de Janeiro, em uma segunda-feira, o fez por especial interesse no tema em torno do qual gira o filme: direitos humanos. Ao observador mais atento não escapará o fato de que, há tempos, o assunto não frequentava rodas de conversa e noticiários, como tem ocorrido de um ano para cá. Por um lado, pelas informações vindas à tona desde que foi instaurada a Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012. Por outro, graças à figura polêmica e homofóbica de Marco Feliciano, deputado do Partido Social Cristão (PSC) de São Paulo, que, no início de março, assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Mais Náufragos é o primeiro filme do cineasta a não ter o assunto fotojornalismo como carro-chefe e inaugura um novo ciclo na carreira deste uruguaio de 52 anos, que veio com a família para o Rio de Janeiro ainda criança, no início da década de 1970.


JORNALISTAS E VIOLÊNCIA


O título do documentário vem de uma passagem do livro As Veias Abertas da América Latina (1971), de seu conterrâneo, o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Mas, segundo Planel, a ideia para sua realização começou a ganhar contornos mesmo a partir de uma provocação. Em 2009, ele apresentava o seu premiado Abaixando a Máquina – Ética e Dor no Fotojornalismo Carioca (lançado em 2007) em um festival de cinema sobre direitos humanos que acontecia na capital paraguaia, Assunção. No debate que se seguiu à exibição do filme, enquanto falava sobre os riscos envolvidos no trabalho de repórteres fotográficos que cobrem conflitos urbanos, alguém na plateia o interpelou. Era um militante ligado a movimentos sociais que, em tom bastante inflamado, dizia acreditar que a maneira como o fotojornalismo retrata a violência só contribui para fazê-la aumentar. O diretor não pestanejou ao retrucar: “Mas para nós, que moramos no Rio de Janeiro, para nós, que somos jornalistas e trabalhamos nessa área de fotografia e audiovisual, e, principalmente, para quem mora em comunidades carentes, a segurança pública é um dos quesitos mais básicos dos direitos humanos”. Uma das discussões levantadas pelo filme Abaixando a Máquina é, justamente, sobre o quão mais desprotegidos pelo aparato do Estado encontravam-se os cidadãos cariocas naquela época, imediatamente anterior à instalação das primeiras UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) nas principais favelas da cidade.

Diante da argumentação do documentarista, o militante paraguaio respondeu de volta, justificando que, no Paraguai, a questão dos direitos humanos é mais frequentemente discutida pela ótica do “campesino”, isto é, dos trabalhadores rurais, daqueles que têm pouco ou nenhum direito sobre as terras onde vivem. Mas a “batalha” não terminou por ali. “O cara continuava a achar absurdo o que eu estava falando”, relembra Planel, que, depois de muito argumentar, não viu outra saída senão dar o debate por encerrado. Eu disse: ‘Tudo bem, cada um tem o seu ponto de vista’. Mas, a partir disso, fiquei com a indignação dele na cabeça.”

O assunto ainda ecoou por muito tempo nos pensamentos do diretor. Que interessante seria, ele passou a imaginar, empreender uma jornada pela América Latina a fim de mostrar como cada povo e cada setor da sociedade elegem aspectos diferentes dos direitos humanos como os mais vitais para eles. Menos de um ano transcorreu entre os devaneios e a decisão de, finalmente, cair na estrada. Apesar de ter cogitado angariar recursos para a produção pelas vias habituais, Planel iniciou-a com dinheiro do próprio bolso. E foi o que ele fez questão de frisar logo na abertura do documentário: “Este filme não contou com nenhum patrocínio, de empresa pública ou privada, nacional ou estrangeira”.

Na Argentina, no Chile, no Uruguai, nos oito países para os quais o cineasta viajou com o propósito de conversar com intelectuais, trabalhadores das mais diversas categorias e representações políticas, ele ampliou a discussão, acrescendo à pauta novos matizes. Do homossexual mexicano que buscou asilo no Canadá, por ser perseguido em seu país de origem à chilena funcionária do Palácio de La Moneda que se sente discriminada em seu trabalho de varredora, passando pela jornalista e senadora argentina Norma Morandini, ao escritor Eduardo Galeano e ao arquiteto Oscar Niemeyer (em uma de suas últimas entrevistas), o documentarista diz ter feito o máximo para que seu filme contemplasse personagens e categorias com potencial para enriquecer a discussão por ele proposta.


DIREITOS UNIVERSAIS


Mais de 60 anos depois da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas, é saudável que esse debate seja continuamente retomado. Assinado em dezembro de 1948, ou seja, três anos após a criação da ONU e do fim da Segunda Guerra Mundial, o documento estabelece, ao longo de 30 artigos, os direitos fundamentais de todos os seres humanos, independentemente de raça, cor, sexo, idade, religião, opinião política, origem nacional ou social etc. Embora se reconheça a importância de cunhar uma declaração com tamanha abrangência, é a sistemática inobservância dos direitos aí arrolados que continua a servir de motor a toda a sorte de conflitos ao redor do planeta.

“Sabemos que diferentes nações escolhem diferentes caminhos para atingir a promessa de democracia e que nenhuma nação deve impor sua vontade a outra”, disse o presidente americano Barack Obama, ressaltando, em discurso gravado durante visita ao Brasil, em 2011, diretrizes que seu próprio país incontáveis vezes desrespeitou. “Queremos poder escolher como seremos governados e moldar nosso próprio destino. Esses não são ideais americanos ou brasileiros. Não são ideais ocidentais, são direitos universais. E temos que apoiar esses direitos em toda a parte”, interrompe-se, sob aplausos entusiasmados da plateia.

O ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz de 1980, por sua vez, lembra que os direitos humanos não são um fenômeno estanque e que há, em todo o mundo, uma preocupação crescente com os chamados direitos de terceira geração, categoria também cunhada pela ONU, que engloba os direitos dos povos e de setores da sociedade. “São também direitos mais modernos, que foram incorporados a partir de lutas da sociedade”, acrescenta, a certa altura, o também argentino Julio Santucho, diretor do Instituto Multimedia DerHumALC – Derechos Humanos en América Latina y Caribe, enfatizando que se está tratando aqui de uma questão dinâmica. “Direitos humanos não são um evangelho, são o resultado da evolução da sociedade.”


ITINERÂNCIAS


Entre os compromissos que Planel já firmou para Mais náufragos que navegantes, estava Brasília, no último dia 6, com a exibição do documentário seguida de debate no Auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados. No dia 16, às 9h, uma nova exibição do filme acontece no Rio. E, dessa vez, dentro do programa “Domingo é Dia de Cinema”, do Cine Odeon Petrobras, na Cinelândia. Após a projeção, o diretor debate com a plateia o tema “Direitos humanos para quem?”. Um seminário itinerante baseado no documentário também está sendo planejado. A estimativa é que a primeira edição ocorra no segundo semestre deste ano.

A proposta é ter um jornalista mediando debates com personagens entrevistados por Planel – quatro em cada país por onde o evento passar. “A ideia, a princípio, é fazermos em Brasília, Rio e São Paulo. Depois: Buenos Aires, Montevidéu e Santiago. E assim iríamos trocando de personagens e cobrindo toda a América Latina até o México”, antecipa o diretor.


FIM