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Revista da Cultura * Reportagem de capa. Seção: Cidades. Páginas 52 a 55.
Data da publicação: Abril de 2013 * Edição n° 69


 Reportagens de autoria da jornalista Adriana Paiva Prefeitura Rio de Janeiro Porto Maravilha Miguel Pinheiro gentrificação Morro Conceição portugueses Portugal cidades revitalizadas revitalização do Centro

Do Morro ao MAR, a África é logo ali



Um museu novo com metas inclusivas, um coletivo de criadores vindo de Portugal, um bairro repleto de ateliês: a zona portuária do Rio vê a arte brotar por todos os lados


Reportagem e texto por ADRIANA PAIVA


Embora sejam muitos, mundo afora, os exemplos de cidades que tiveram áreas inteiras transformadas a partir da revitalização de seus portos, também costumam ser numerosos os registros dos impactos negativos levados à rotina de quem circula ou mora na proximidade desses locais. Desapropriações, despejos, aumento do fluxo de pessoas e de veículos estão entre as queixas mais comuns.

Com as obras levadas a cabo na zona portuária do Rio de Janeiro, as reações não são muito diferentes. Iniciadas com vistas à Copa de 2014 e à Olimpíada de 2016, a estimativa da Cdurp (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro) é que as transformações estruturais e viárias no local se estendam por mais três anos. Mas, ainda que os moradores de bairros próximos (como Gamboa, Santo Cristo e Saúde) estejam apreensivos sobre as consequências que trarão às suas vidas, as obras capitaneadas pelo Consórcio Porto Novo (batizadas de Projeto Porto Maravilha) despertam também, aqui e ali, sinais de otimismo.

Um fato recente que veio acentuar a sensação de que novos (e auspiciosos) ares circulam pela vizinhança foi a inauguração, no início de março, do Museu de Arte do Rio (MAR), o primeiro (e o que se anuncia um dos mais imponentes) dos produtos do “Porto Maravilha” a ser entregue à população carioca. Localizado na Praça Mauá, uma das portas de entrada da zona portuária, o museu é fruto de uma parceria entre a Prefeitura do Rio e a Fundação Roberto Marinho.

“Fomos convidados pelo prefeito do Rio de Janeiro, o Eduardo Paes, há cerca de quatro anos, para ajudar a prefeitura a pensar um projeto para esse local, que fosse uma âncora cultural e educacional do processo de revitalização da área portuária”, disse Hugo Barreto, diretor-geral da Fundação Roberto Marinho, durante coletiva de imprensa realizada na véspera da inauguração do MAR. “Esse museu, então, é uma das vertentes, junto com o processo educacional, que visa a contribuir com isso, além de também agregar valor à paisagem urbana do Rio de Janeiro.”


CELEIRO ARTÍSTICO


Pertinho do MAR, a poucos metros do centro financeiro do Rio, mas já nos domínios do bairro da Saúde, encontra-se o Morro da Conceição. Cercado por grandes avenidas, mas a salvo de boa parte das desvantagens do progresso, o local ainda preserva ares de cidade interiorana e tesouros culturais datados dos primeiros momentos da ocupação do Rio de Janeiro, a partir de 1565. Foi ali, desde o final dos anos 1970, que se iniciou um processo – por que não? – de reinvenção, renovação e resgate histórico. Vários artistas plásticos passaram a adotar o morro como moradia e estabelecer lá seus ateliês. Em casas espalhadas por ladeiras com nomes pitorescos como “Rua do Jogo da Bola”, eles foram chegando aos poucos e para ficar. “Hoje, somos 12 artistas”, conta o escultor paulistano Claudio Aun, que está ali desde 1980. “Depois que me mudei, comecei a resgatar uma série de pessoas, porque na época era muito em conta alugar casa aqui”, relembra.

Cedo ou tarde, a presença de tantos criadores em uma mesma vizinhança teria que fazer vicejar alguma outra manifestação artística de peso. E eis que, em 2002, quatro daqueles pioneiros (Claudio Aun, Paulo Dallier, Renato Sant’Ana e Marcelo Frazão), todos artistas plásticos, uniram-se para dar à luz o Projeto Mauá.

No início, a proposta era tornar todas as pérolas do patrimônio histórico local acessíveis a um número maior de pessoas, já que o morro, então, não era muito mais que um ponto remoto na selva de pedra do centro do Rio. E o chamariz adotado pelos artistas para mudar essa situação foi abrir seus ateliês à visitação pública, oferecendo oficinas criativas gratuitas. O projeto, que começaria ocupando o morro de dois em dois anos, um pouco mais tarde aconteceria anualmente. E assim, a cada edição, o evento foi ganhando apoiadores importantes (como o próprio Consórcio Porto Novo), visibilidade na mídia e fãs nos quatro cantos da cidade. “Antes, muita gente de fora achava que, por ser morro, aqui era uma favela”, revela o paulistano Aun. “Todo esse pessoal que chegou depois veio atraído pelo Projeto Mauá”, acredita.

Em um desses “fluxos migratórios”, foi que aportou ali a artista plástica Adrianna Eu, convidada para realizar no local uma intervenção urbana ligada a um projeto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). “Nunca tinha ouvido falar no Morro da Conceição antes. Foi amor à primeira vista”, conta a carioca, que, há quatro anos, saiu da Urca e mudou-se com pincéis e cavaletes para uma casa na Rua do Jogo da Bola, vizinha de vários outros parceiros de métier. Ela também costuma abrir seu ateliê às atividades do Projeto Mauá. E embora não dê cursos nessa ocasião, já que seu trabalho é mais voltado à arte contemporânea, ela colabora incentivando o cultivo de tradições herdadas dos primeiros moradores vindos de além-mar.

A ilustradora e grafiteira carioca Vanessa Rosa ainda morava no Leblon quando, acatando sugestão de seu orientador de pesquisa, o artista plástico e curador Roberto Conduru, passou a frequentar o morro em busca de inspiração para dar corpo a um projeto para o seu curso de graduação em História da Arte, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo? Mesclar o passado e o presente desse pedaço específico do Rio para recriá-los por meio de personagens que, posteriormente, seriam pintados nos muros e nas paredes de construções locais. Munida de leituras como os relatos de viajantes e valendo-se de entrevistas informais, Vanessa foi refazendo o percurso de homens e mulheres que passaram pelo morro nas mais diferentes épocas. “Inicialmente, foi um morador e historiador da arte, Rafael Cardoso, quem me mostrou alguns dos lugares mais interessantes para pintar e contou sua visão da história da região”, explica. “Outro, o pintor Paulo Dallier, me emprestou fotos antigas de sua família, que mora no morro já há algumas gerações.” A primeira pintura que Vanessa fez em um muro local, de um “preto velho”, foi atendendo à sugestão da própria dona da casa, que é espírita. Depois dessa, muitas outras intervenções vieram. Sempre pintadas em tamanho natural – e em alguns casos cobrindo muros outrora pichados –, as figuras, que evocam de padres a marinheiros e de sambistas a baianas, continuam lá, lembrando aos moradores um pouco da sua história e de onde vieram os seus antepassados.


DE PORTO EM PORTO


O ator e diretor teatral português Miguel Pinheiro é outro exemplo de forasteiro que caiu de amores pelo Morro da Conceição. Tamanho o seu encanto pelo lugar que foi ali que ele, vindo de Portugal em 2012, resolveu estabelecer moradia. Pinheiro é o diretor artístico do 10pt – Criação Lusófona, coletivo que tem como proposta desenvolver um trabalho multidisciplinar em comunidades periféricas de países de língua portuguesa, de modo a redescobri-las a partir da voz dos nativos. Antes de chegar ao Rio, o coletivo (criado em 2010) já passou com projetos pela Cidade do Porto, em Portugal, e por Mindelo, em Cabo Verde. “O que nos motivou desde o início foi despir essas comunidades de preconceitos, tais como, ‘a África é toda pobre e miserável’, ‘Portugal é um país sem graça, decadente e submisso’, ou ‘o Brasil não é um país sério’. Apostamos em achar a singularidade desses lugares”, esclarece Pinheiro, reforçando o significado do nome do coletivo: "10pt, em português de Portugal, se lê ‘des.pe-te’, de despir, desnudar”.

Aqui, o projeto, que recebeu o nome de Fui? e está inscrito no programa oficial do Ano de Portugal no Brasil, tem promovido oficinas e passeios fotográficos desde fevereiro. No trajeto das saídas, que invariavelmente compreendem ruas da zona portuária, os participantes fotografam e colhem histórias das pessoas que moram e circulam por ali. Segundo Pinheiro, a iniciativa tem atraído um número considerável de brasileiros que, radicados na cidade há algum tempo, têm especial interesse pela discussão de temas como memória e identidade. Para o ativista, quanto maior for o conhecimento sobre os povos que formam a identidade brasileira, maior também será o orgulho de possuirmos laços de sangue com eles. “Sinceramente, gostaria muito que o trabalho do 10pt pudesse ajudar nesse movimento.”

O material reunido durante as atividades do coletivo no Brasil já tem destino certo. As fotos serão exibidas em duas mostras: uma nas ruas da região portuária, outra no Centro Cultural Justiça Federal (a partir do dia 10 deste mês). Já os depoimentos registrados durante entrevistas com pessoas fotografadas deverão servir de base ao roteiro da peça teatral que Pinheiro pretende encenar ainda no primeiro semestre deste ano. Desde que com “a bênção de Dioniso”, avisa.


DE VOLTA AO MAR


Se tantos cariocas e estrangeiros estão acordando para as maravilhas ocultas no Morro da Conceição, não seria o Museu de Arte do Rio, vizinho tão próximo, que iria se manter impassível diante delas. Em novembro passado, meses antes de sua inauguração, o museu coordenou a realização ali da segunda edição do evento O Morro e o Mar. Graças ao grande sucesso da edição realizada em setembro – e que levou ao Morro mais de 1600 visitantes –, monitores treinados pela instituição voltaram a conduzir visitas aos ateliês locais e aos pontos de maior importância histórica da região.

A artista plástica Adrianna Eu, que participou das duas edições da iniciativa, vê com muito bons olhos a presença do MAR na vizinhança. “Minhas expectativas, como artista e cidadã, são as melhores possíveis”, garante. Adrianna diz observar uma especial disposição por parte do museu de estabelecer vínculos com a comunidade à sua volta. E cita como exemplo dessa postura a garantia dada pela instituição de que todos os moradores da zona portuária poderão visitar o museu gratuitamente, em qualquer dia da semana, bastando para isso, que apresentem um comprovante de residência à administração. “O MAR é um museu incrível, que chega pensando em criar fortes laços com o seu entorno e um lugar de parceria”, reforça. “Esse cuidado é o que me dá esperança”.


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